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A experiência na crítica de cinema: um desabafo de gênero

A foto abaixo eu mesma tirei enquanto redigia este texto. Curiosamente irônico o fato do corretor automático me indicar a correção da palavra crítica para crítico e eu não pude resistir em colocar essa imagem como capa.


Desde quando decidi dedicar-me integralmente à crítica de cinema, de dezembro de 2023 até a ocasião em que escrevo este texto, outubro de 2024, incontáveis foram as vezes que, na ocasião de uma entrevista, me fizeram a seguinte pergunta: ‘qual a sua experiência sendo mulher na crítica de cinema?”


Para ser honesta, me perguntam isso há anos, desde quando conciliava a crítica de cinema com o direito. A pergunta variou minimamente de acordo com a proposta de cada entrevista - natural que cada contexto trouxesse diferentes temas e recortes, muitas vezes da região nordeste, sendo eu natural do Maranhão -, mas a essência da pergunta em si nunca mudava. A minha resposta ia de acordo com o que se fazia necessário responder, a depender do objeto estudado, mas uma única palavra jamais saiu diferente para mim: é “difícil”, respondi todas as vezes. 


Se me perguntassem agora, eu acho que adicionaria uma nova palavra. Ser crítica de cinema não é apenas “difícil”, é solitário. É sobreviver em um universo onde homens compactuam com homens (mesmo que estejam errados), glorificam o trabalho de outros homens (ainda que sejam medíocres), têm como parâmetro de qualidade artística outros homens (e mal percebem isso como um problema) e entendem a experiência de criticar arte apenas sob o prisma da masculinidade. É um verdadeiro câncer na crítica cinematográfica e na cinefilia, e é uma experiência pela qual passamos sozinhas. 


Interessa a manutenção do status quo, é claro, uma vez que é esta a principal forma de manter o controle sobre a narrativa histórica e política, de pilares machistas, opressores e patriarcais, os quais são usados sempre que lhes convém, mas que são mascarados quando também vêm ao caso. Em uma profissão onde o reconhecimento de uma classe importa, quando essa classe é composta majoritariamente por homens, é aqui que mora o câncer a que me refiro. São eles que irão ditar as regras do jogo e somos nós as que, claro, somos submetidas a estas. Quase sempre da mesma forma. É um “clube do bolinha” legitimado. E pior, um “clube do bolinha” que tem o poder de legitimar, também, podendo decidir quem pode e quem não pode, quem é bom o suficiente e quem não é. 


Parece absurdo pensar em uma profissão tão hostil assim para mulheres, mas conversando com colegas que trilham este caminho e sentindo na pele mais profundamente nos últimos meses o que significa essa escolha, essa é a crítica cinematográfica. Pelo menos a brasileira. Um ambiente onde mulheres, quando não são assediadas sexualmente, são assediadas moralmente. São xingadas, são motivo de piada, são diminuídas. À exceção da cota permitida por todo crítico, sempre tem uma ou outra crítica de que ele vai gostar (não raro, estas precisam ter mil e uma qualificações, livros publicados e tudo o mais, enquanto para homens basta ligar uma câmera, às vezes até sem o “pedigree” de associação está valendo), mulheres geralmente não são bem-vindas - especialmente se suas críticas são imbuídas de recorte de gênero. 


Quanto mais formalistas forem, melhor! Quanto menos falarem sobre gênero, mais fascinante! Quanto mais “separam” o filme do seu contexto político, da sua experiência enquanto espectadora, do conhecimento adquirido por meio da sua vivência (claramente) feminina, mais fantástico! Ela é mulher, sim, mas veja bem, sua crítica não é sobre defender “pautas”, ufa!,  não é “moralista”, ai, que bom!, é sobre o bom e velho cinema. E só. 


E bom, eu confesso que não sei até onde me interessa o “bom e velho cinema e só.” Na verdade, eu acho que nem me interessa. Tem me dado uma enorme preguiça, sem contar que chega a ser uma piada das maiores. Afinal, são estes os mesmos homens que não olham para si tempo suficiente para perceber que eles, do alto do seu pedestal, do cume da montanha de sua sabedoria fálica,  reproduzem o mesmo olhar hegemônico, cheio de ideologia (pasmem!), com recorte de gênero, cor e sexualidade, há mais de 100 anos, como parâmetro máximo do “bom cinema”. 


Uma cegueira colossal que, de forma não obstante rasa, empurra mulheres e suas análises em direção ao precipício. Muitas críticas que começaram comigo, ainda em 2019, não aguentaram e pularam fora do barco antes que fosse prejuízo demais. Mental mesmo. Quando se fala sobre recorte de gênero no cinema, acredito que o mesmo que Bell Hooks discute em “O Olhar Opositivo” sobre a espectadora negra pode ser aplicado:


Quando a maioria dos negros nos Estados Unidos tiveram pela primeira vez a oportunidade de ver filmes e programas de TV, eles o fizeram perfeitamente conscientes de que a mídia de massa era um sistema de conhecimento e poder que reproduzia e mantinha a supremacia branca. Ver televisão, ou filmes comerciais, envolver-se com suas imagens, era envolver-se com a negação da representação negra. Foi o olhar opositivo que respondeu a essas relações do olhar ao desenvolver o cinema negro independente. Os espectadores negros do cinema e da televisão convencionais puderam traçar o progresso dos movimentos políticos pela igualdade racial via a construção de imagens, e assim o fizeram. No lar sulino da minha família negra e de classe trabalhadora, localizado em um bairro segregado racialmente, assistir à televisão era uma forma de desenvolver o senso de espectarorialidade crítica. A não ser que você fosse trabalhar no mundo branco, entre os dois caminhos, você aprendia a olhar as pessoas brancas vendo-as na tela. Os olhares negros, como foram constituídos no contexto dos movimentos sociais para a insurreição racial, eram olhares interrogativos.” 


Na crítica de cinema predominantemente masculina, branca e heterossexual, exercitar o olhar opositivo é sinônimo de gerar incômodo. A própria existência de mulheres críticas, ao longo da história, pressupõe olhares interrogativos sobre o status quo dominante. Por isso, trata-se de assumir o risco de soar irritante aos ouvidos acostumados a deter a verdade inexorável, inclusive sobre a forma de construir narrativas. A ausência de um parâmetro feminino que provoque o exercício crítico a partir do contraditório, da confrontação de ideias, é o mesmo que se deparar com a problemática do seu próprio discurso. 


Quando penso sobre a ausência de referenciais femininos na construção do pensamento crítico no mundo, pelo menos no mundo ocidental, é assustador. Desde a Grécia antiga, mulheres são submetidas a ideias inerentemente masculinas sobre tudo, desde a forma como somos governadas até a maneira como devemos enxergar as nossas relações ao nível interpessoal. A masculinidade é a regra e, na prática, isso significa que as exceções são sentenciadas a permanecerem exceções até que se invoque o contrário.


É certo que a existência de um olhar opositivo, feminino e feminista na crítica de cinema mal chega a empurrar nenhum homem para o precipício, claro, mas sua insistência em existir acaba por gerar um fenômeno interessante, reacionário, em que homens perante o pacto velado da masculinidade rejeitam o olhar feminino através do que acreditam se tratar apenas de uma questão de público-alvo e experiência sensoriais quando, todavia, é possível se tratar de uma dessensibilização sistemática para com o feminino. Algo que Freud e Lacan explicam através da psicanálise e que um vídeo de trinta segundos de Meryl Streep em um bate-papo descontraído acaba por sintetizar também. 


No artigo “Mulher: um sintoma para o homem?”, as autoras que discorrem sobre as ideias lacanianas em torno da representação feminina chegam à seguinte ideia:


“Sabemos que, para Lacan, % (mulher que não existe, pois não há no inconsciente freudiano a representação da mulher) pode ganhar consistência de diversas formas e uma delas é como ideal presente na arte. Ao criar uma representação do feminino, o poeta, por exemplo, confere realidade a esse ideal. Da mesma forma a mulher existe para o homem, que toma uma mulher como aquela que seria capaz de preencher sua falta. Em “Televisão” (1964/1993, p. 70), Lacan nos aponta que, ao contrário de %, a mulher que não existe, ou seja, não existe enquanto toda, só existem mulheres não toda, o homem existe. Em outras palavras, o homem existe como proposição universal, todo referido ao falo. “Uma mulher só encontra o homem na psicose” (ibid.) Em outras palavras, “O homem” é um conceito que tem consistência lógica, mas uma mulher só procura um homem quando ele está para ela marcado pela castração.” 


“O homem existe como proposição universal.” Impressionantemente ou não, uma vez que também baseado em ideias freudianas e psicanalistas, tal afirmação não só explica como Mulvey descreve o “male gaze” no seu famoso artigo “Prazer Visual e Cinema Narrativo”, o olhar ativo/masculino, o olhar passivo/feminino, como é uma análise mais elaborada daquilo que Meryl, na ocasião do vídeo mencionado acima, vai propor de maneira objetiva: mulheres aprenderam a falar “homem”, e homens nunca aprenderam a falar “mulher.” A reação massivamente negativa de homens a filmes que abraçam a feminilidade ou temáticas femininas e feministas através de códigos e linguagem é inversamente proporcional à forma como tão apaixonadamente defendem os filmes que incorporam em cada detalhe aquilo que costuma compor seu universo masculinizado.


Sempre sobra para as mulheres o dever de discutir o cinema feito por mulheres, com temas femininos, ou filmes feitos por homens com recorte de gênero. Até quando não é esse o foco de uma mulher na sua pesquisa, por exemplo, a crítica é chamada nesse local reservado que não compete apenas ao seu objeto de estudo, infelizmente, é parte significante da presença feminina nesses espaços. Minha teoria é de que isso acontece não exatamente por questões de mérito ou conhecimento, mais uma vez infelizmente, e sim por ser o momento em que homens críticos costumam lembrar da necessidade de incluir mulheres na discussão crítica como um todo, mal percebendo que talvez se as mesmas e recorrentes análises sobre a grandiosidade dos cânones John Ford, Sergio Leone, Akira Kurosawa, Roberto Rossellini, Jean-Luc Godard, Glauber Rocha e outros fossem substituídas por uma tentativa de prestigiar mulheres além de Agnès Varda e outros dez (cinco?) nomes com verdadeiro afinco, já se trataria de uma “ajuda” bem maior, obrigada. 


Enfatizo que jamais isso é sobre desmerecer o local de mulheres defendendo seus objetos de estudo e seu conhecimento sobre diferentes nichos, o que é profundamente necessário para a crítica cinematográfica e vai ao encontro do que aqui discorro. O que eu quero dizer é que parece que só se lembram de nós quando é possível nos pôr em uma determinada caixa. “Ela estuda cinema de gênero”, “ela estuda isso ou aquilo”, enquanto homens parecem não precisar de recorte para discutir quaisquer assuntos que queiram. Esse é um dos sintomas do problema, pois, fora do dia a dia, fora de eventos e demais oportunidades, a nossa opinião é frequentemente desvalidada e/ou invisibilizada. Isso quando, claro, não é hostilizada.

Para evitar a hostilidade e as caixas preestabelecidas para nós, muitas mulheres até se adiantam ao processo e impõem nichos a si mesmas como forma de se proteger dessas situações desagradáveis que se tornam cada vez mais constantes conforme a relevância. Quantas são as mulheres que se veem obrigadas, ao menos no início da sua construção crítica, a emular o comportamento masculino na forma de escrever e assimilar o gosto, socialmente construído e dominante, como o seu próprio por ausência de referências femininas em sua trajetória?


Algumas, muito provavelmente, nem percebem. Costumo notar que muitas mulheres na crítica tentam falar “homem” e já se tornaram muito boas nisso. Embora queira acreditar naquilo que Carol Almeida defende sobre reeducação do olhar de homens e mulheres em “Por outra representação da mulher no cinema”, através de realizadoras (diretoras, roteiristas, diretoras de fotografia, críticas de cinema, etc.), admito que tenho me tornado um tanto cética. Não irei desistir, todavia, preciso dizer que é difícil manter-se otimista sobre o futuro de mulheres no cinema, qualquer que seja sua esfera de atuação, quando somos recebidas com tamanho desdém e quando, estruturalmente, a manutenção das mulheres como notas de rodapé é o maior interesse de quem detém o poder sobre “as regras do jogo” da legitimidade que citei anteriormente. 


Quando falar “homem” é uma espécie de pré-requisito inegociável (especialmente quando você deseja ser lida), é quando acredito que a frustração mais me invade. Podemos reconhecer mulheres, premiar mulheres, contemplar mulheres, ler críticas de mulheres, mas ao fim e ao cabo, me incomoda que o parâmetro masculino ainda se sustente de maneira inquestionavelmente hegemônica, como proposição universal, e que, diante disso, o preço que se pague para se opor a toda essa opressão sistêmica seja com a própria saúde mental - especialmente se você expõe suas ideias em redes sociais cujas câmaras de eco vão de misoginia a nazismo.


Seguir o caminho da crítica, por tudo isso, é difícil, solitário e é, também, um trabalho árduo de questionar-se todos os dias sobre a qualidade do seu trabalho e a profundidade do seu conhecimento. Em qualquer outro cenário, isso seria absurdamente precioso, afinal, quem sou eu para achar que sei demais? Não sei de nada. Entretanto, me pergunto de forma bem mais recorrente hoje: quem são eles para achar que sabem mais? Quando, no início da carreira, buscar a validação de um grupo majoritariamente formado por homens é uma experiência próxima à de enxugar gelo com uma folha de papel A4, percebemos que não existe caminho “seguro” se este exige que muitas vezes nos mantenhamos caladas, mesmo quando vítimas de injustiças em nome da política da “boa vizinhança.”


Se argumentar ideias não parece ser um caminho para muitos, a mim manter a realidade falseada da política da boa vizinhança também não interessa. Falar “homem”, ou tentar chegar próximo disso, para mim, basta. Não nutro mais qualquer interesse em me manter nesse lugar e, se isso significar impor a si mesma uma caixa, talvez seja o caminho útil. Vivo nessa contradição, pois se por um lado o ceticismo me invade, a ojeriza pela arrogância só cresce. É preciso ir ao encontro do que foi preestabelecido, se não for por uma reeducação do olhar, que seja pela retribuição do tratamento. Desistir parece irresistível, mas não se apresenta como uma opção. 


Aos homens que chegaram até aqui, espero que tenham entendido. Não tem legendas e está em "mulher."


Fontes: 




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