O cinema de memória.
A primeira vez que pensei sobre o cinema como memória, denúncia e documento histórico foi quando assisti ao (grande) filme de Eduardo Coutinho, "Cabra Marcado Para Morrer" (1984). Admito que, à época, nada sabia sobre a história de João Pedro Teixeira e a luta camponesa no interior da Paraíba. Me comovi com os relatos dos personagens/entrevistados, com a crueldade com que, vinte anos depois, uma família havia sido completamente destruída pela Ditadura Militar brasileira. Cada um em um lugar do país, mãe, filhos e netos, gerações inteiras, tentando tocar a vida diante de um trauma irreparável e jamais indenizável.
Nesse filme, contudo, o que mais me recordo é da figura de Elizabeth Teixeira, a grande personagem da filmografia de Coutinho. Sua imagem, eternizada à mesa da família enquanto narrava sua história de fuga e bravura, me fez pensar sobre como, mesmo diante das piores situações possíveis, a única forma de reagir a um sistema tão cruel é lutar. Elizabeth me inspirou e continua a me inspirar, quando me fez pensar sobre como mulheres são subestimadas (e não raro, apagadas) em sua luta e sobre como pouco falamos dessas matriarcas que durante a Ditadura não apenas sofreram com a destruição de suas famílias, como foram duplamente torturadas ao tentarem manter tudo no lugar mesmo quando o estrago já havia sido feito e toda injustiça já havia mudado o rumo de suas vidas.
Em 2024, "Ainda Estou Aqui" de Walter Salles é mais um filme sobre memória e denúncia da Ditadura Militar brasileira. O longa, que ganhou o prêmio de "Melhor Roteiro" em Veneza e tem sido aplaudido de pé ao redor do mundo, conta uma história muito semelhante à de Elizabeth Teixeira e seus filhos no filme de Coutinho. Aqui, a figura de Eunice Paiva também é o que move a narrativa e sua trajetória guarda semelhanças significativas com a personagem de 1984. Como Elizabeth, Eunice também perdeu o marido, Rubens Paiva, durante o regime militar, também se viu perdida diante da imensa responsabilidade de cuidar dos filhos e manter a família reunida - pelo menos o que sobrar dela. E, da mesma forma, diante do trauma, precisou conter suas emoções e seguir a vida, encontrando no ativismo uma maneira de lidar com a dor.
Naturalmente, o filme de Walter Salles é bastante diferente do documentário de guerrilha produzido por Coutinho. A perspectiva de Salles, além de bem mais abastada (dentro e fora das telas), é construída em torno de uma narrativa ficcional e bastante clássica, cuja sobriedade e contenção parecem ser inspirações diretas da forma de Eunice ver o mundo. Em meio a sons de helicóptero, a cena inicial remete à mensagem central que se extrai da vida da família Paiva: é sobre nadar na turbulência das ondas e conseguir boiar quando a maré vem.
A luz solar que entra na câmera e a condução clássica do início do filme são apresentadas como o status quo dessa família, praticamente inabalável. Sem problemas financeiros ou conjugais, os bons momentos dos Paiva parecem ser todos os dias, sempre registrados através de fotografias e pequenos curtas-metragens gravados com uma Rolliflex. Todavia, em meio a uma ditadura militar, os bons momentos não duram para sempre e os Paivas transparecem consciência política por meio de diálogos, músicas e comportamento - os olhares de Eunice acompanhando com temor o exército pelas ruas de Copacabana, a reação da filha Verônica ao ser parada por uma blitz, o comportamento misterioso de Rubens. O mal está ali, os cercando todos os dias.
E então, a praia sempre radiante, o calor da fotografia e as risadas são eventualmente substituídos por tensão, sombras e segredos. Salles usa contrastes de luz e sombra para transformar uma casa ora feliz em um reduto de inquietação e desespero. Não existem mais motivos constantes para sorrir, uma parte importante de todos desapareceu e não tem previsão de retorno. Aos quarenta minutos de filme, o sonho se dissolve em pesadelo, e é quando Fernanda Torres brilha. A direção assume de uma vez a perspectiva de Eunice como sua, voltando nossos olhares para suas microexpressões dolorosas, desde sua resiliência diante da tortura que sofreu na prisão, ao sorriso que deixa escapar uma vez com o atestado de óbito do marido em mãos.
Admirei a forma rigorosa com que Salles pratica o aspecto contido e sóbrio do seu filme. Mesmo quando usa imagens de arquivo da ditadura, o faz acompanhado de uma reconstrução ficcional do Brasil dos anos 70 bastante convincente no trabalho da direção de arte. Também me vi surpresa, positivamente, em como a trilha provoca os gatilhos emocionais certos para um filme dramático, mas se contém o suficiente para não se tornar tão piegas. Existem momentos de dúvida, por pensar que poderíamos estar diante de uma farsa ou mesmo diante de mais uma antecipação exagerada e equivocada, mas "Ainda Estou Aqui" contorna muito bem até seus aspectos mais típicos de "Oscar" e "original Globoplay."
A história de "Ainda Estou Aqui", para mim, é como o mar. Quase um personagem desse filme, o mar é símbolo de calmaria, mas também de turbulências e perigo. Uma onda inesperada invade a família é diante disso que Eunice tinha apenas duas opções: afogar-se ou nadar contra a maré. Diante de períodos turbulentos, perigosos e sombrios, o cinema, como memória na intenção de fazer uma denúncia, é como um respiro de sanidade, de lucidez. O trauma deixado por esse período, para muitos Paivas nesse Brasil, é eterno. O olhar de Fernanda Montenegro reagindo diante de uma televisão ao ouvir a palavra "ditadura" ao final deste filme deixa isso mais que claro, emocionante. Trata-se de uma ferida aberta para todos os brasileiros, que não importa quantas vezes seja cutucada, deve ser para sempre lembrada.
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