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Foto do escritorFabiana Lima

Juror no. 2 é o último homem em conflito de Clint Eastwood

De “M - O Vampiro de Dusseldorf” (1931) e sua incrível sequência final a “Anatomia de Uma Queda” (2023) e o dilema à Dom Casmurro, os bons dramas de tribunal costumam ser aqueles que questionam a moralidade e ética humanas em contextos onde até o melhor dos advogados ainda não seria o suficiente para nos convencer nem de A, nem de B. São dramas os quais vão além do que se compreende socialmente como “certo” ou “errado”, diante dos quais existem diversas nuances, implicando em uma análise de natureza mais profunda e complexa, não raro percebendo a concepção de justiça como um conceito turvo. 


Em seu novo e possivelmente último filme da carreira, Clint Eastwood revisita e, em certa medida, reinterpreta filmes como “12 Homens e Uma Sentença” (1957) e abrilhanta, mais uma vez, sua carreira naquilo que sabe fazer de melhor, em qualquer que seja o contexto: aprofundar a complexidade das emoções e relações humanas ao analisar instituições e indivíduos para além de qualquer julgamento. Para um homem que cresce na sombra do cowboy de Leone, e anos depois realiza um filme como “Cry Macho” (2021), que se posiciona publicamente como republicano e realiza um filme como “Gran Torino” (2008), é perfeitamente compreensível que a jornada o tenha levado até “Juror no. 2” (2024) - a carreira de Eastwood como diretor é sempre uma jornada motivada pela sua curiosidade, a qual, mesmo aos 94 anos, parece estar a todo vapor.

Na trama, Justin Kemp (Nicholas Hoult) é um homem comum que um dia é chamado para compor um júri em um caso de feminicídio. Casado e com uma esposa grávida (Zoey Deutch), no estágio final de uma gravidez de risco, o protagonista passa a notar, conforme o julgamento avança, que talvez esteja mais envolvido com o crime em questão do que pensava. Através de flashbacks, a história da noite do crime é contada e recontada algumas vezes e, então, diferentes versões do mesmo caso aparecem na tela a cada nova descoberta. O jogo de encenação que manipula a favor das diferentes versões explora a riqueza do cinema em relação ao valor de verdade das imagens, uma abordagem que lembrou muito o que Brian De Palma faz de maneira exemplar em “Olhos de Serpente” (1998). 


Assim como De Palma, Clint também amplia o campo de visão do espectador sobre o acontecimento a cada retorno e a narrativa ganha novas camadas à medida que alcançamos, pouco a pouco, uma nova significação a cada cena. O jogo de luz e sombra, presente nos filmes do diretor, parece iluminar Justin Kemp na primeira reunião do júri, buscando algum tipo de redenção, nem que seja pela manipulação, enquanto a sombra da persiana pela noite, entrecortada em seu rosto, revela a vontade da confissão, tensão diante da qual o personagem reluta o filme inteiro. A opção é fazer o que seria certo de acordo com a lei e, portanto, o que seria mais “justo”, ou permanecer naquilo que acredita que seja possível para um destino mais benéfico para ele e para a sua família. 

Como espectadores, tal conflito nos atinge de maneira direta. A tensão estabelecida nos corroi tanto quanto à Kemp e nos pegamos perseguindo esse mesmo conceito intangível e volátil durante todo o filme: o que é justo? Impossível de ser compreendido de maneira unânime, aquilo que é justo também só pode ser alcançado através do sistema - e o sistema é falho. Enquanto põe à prova a moral dos personagens, mesmo as motivações de cada jurado e aquilo que antecipa qualquer convicção, Eastwood também questiona as instituições e suas crenças, inclusive em sua suposta infalibilidade, na busca incessante pela verdade no sistema penal como sinônimo de justiça. Em dado momento, um dos personagens até diz, com todas as letras, “às vezes, a verdade não é a justiça”.


Fomos ensinados a acreditar que em todo caso a verdade deve ser alcançada, mas e se a verdade for injusta? Ou indesejada? Por isso, no Direito, fala-se em verdade material e verdade formal. De toda forma, é um jogo no qual ninguém sai ganhando. Nem a personagem de Toni Collette, a promotora, parece ficar feliz quando ganha, ainda menos quando resolve o caso. Ano passado, no filme de Justine Triet, a personagem de Sandra Huller explicita o sentimento confuso após a sentença: “pensei que teria uma recompensa, mas não tem nada” e realmente, não tem nada. Em tribunais do júri, uma sentença jamais recupera uma vida, e ainda que não tenha tal condão, quando uma vida acaba, parece que todo mundo perde


Em que pese muito de “Juror no. 2” ser pouco plausível, é preciso recorrer à suspensão de descrença para aceitar certas lógicas desse roteiro, a construção dramática de Clint garante tensão até a última cena. O “Juror no. 2” é o tipo de filme que faz parecer fácil construir uma ordem de pensamento tão complexa através das imagens. É muito mais difícil fazer um bom drama de tribunal sem julgar você mesmo seus personagens do que parece, para isso é preciso que o diretor mesmo se abdique de encontrar um culpado. É preciso que ele olhe para o próprio filme diante do paradoxo de estar distante o suficiente para não tomar partido, e próximo o suficiente para capturar as emoções. 

As atuações de Toni Collette e J.K. Simmons, por sinal, são hipnotizantes. Ainda, é importante dizer que me parece uma espécie de ato criminoso que David Zaslav não tenha levado esta obra para mais cinemas. Além de ser o último filme de Clint, é um drama que, neste momento político nos Estados Unidos, de reeleição de Donald Trump, acaba se mostrando como parte da conversa. O foco na frase “em Deus nós confiamos” próximo à bandeira americana é a tradução dos dilemas de Kemp e, em certa medida, todos aqueles que passaram a desacreditar no sistema e cujos valores éticos e morais se tornam cada dia mais turvos em busca de verdade e de justiça. 


Nasce, assim, mais um homem em conflito, o último da carreira de um dos diretores mais impressionantes do cinema estadunidense, ainda que muitos desejem achar o contrário. Lúcido, atualíssimo em sua abordagem e, ainda assim, envolto em um conhecimento sobre o gênero na história do cinema que permite que mesmo a premissa mais simples possa se transformar em um filme notável e contemporâneo.


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