Os conflitos geracionais sempre foram um tema importante no cinema e, quando bem trabalhados, se tornam verdadeiramente inesquecíveis. Em “Era Uma Vez em Tóquio”, por exemplo, Ozu já pincelava com maestria a diferença que alguns anos a mais refletiam na dinâmica familiar. Na década de 50, o diretor japonês captou com esse clássico do cinema a sensibilidade, o afeto e as possibilidades insurgentes na relação entre pais e filhos, entre aqueles que parecem acreditar ter todo o tempo do mundo à sua frente e aqueles que sentem o peso de saber que não o possuem mais.
Parte da seleção oficial do Festival de Sundance e vencedor de prêmios no Festival do Rio, o novo filme de Pedro Freire, “Malu”, é uma pequena joia no cinema brasileiro este ano. Baseado na história da mãe do diretor, Malu Rocha, o filme reflete dinâmicas familiares através do diálogo entre três gerações diferentes de mulheres: avó, mãe e filha. Na trama, Malu é uma atriz desempregada que ama teatro político, fuma muita maconha e sonha em construir um teatro comunitário para a comunidade onde mora.
Mulher ansiosa, às vezes mal-humorada e de personalidade forte, Malu é uma personagem difícil de se acessar e Yara de Novaes tira o desafio de interpretá-la “de letra”. Na verdade, mais que isso, a atriz gabarita com êxito o papel que lhe foi dado, provavelmente de imensa responsabilidade, dado o nível de envolvimento emocional do diretor com a obra. Ela constitui a alma do filme e, ao lado de Carol Duarte e Juliana Carneiro da Cunha, eleva o longa nas alturas, tornando a experiência de vê-la a mesma que testemunhar algo, para além de mero espectador.
Com um subtexto político, o filme também perpassa sobre temas de relevância social e política, como a ditadura militar brasileira, e ainda propõe discussões sobre a “caretice” do mundo atual em contrapartida à busca incessante de uma juventude - idealista como Malu - pela revolução. Todas as personagens são bastante complexas e o filme jamais se coloca em um lugar condescendente quanto às suas contradições, motivo de muitas adversidades. Essa escolha, inclusive, é o que torna o longa e o roteiro, principalmente, ainda mais ricos.
A escolha por uma proporção de tela “incomum” e uma fotografia que se beneficia da textura da película são elementos visuais que enriquecem o filme, sim, mas que fariam pouca ou nenhuma diferença não fosse a maturidade cênica do diretor. Seu controle nos closes, nos momentos em que a câmera acompanha o corpo das atrizes e até mesmo quando escolhe se distanciar de momentos de maior intimidade e demonstração de afeto são incrivelmente precisos. Até mesmo na forma como ele costuma compor as cenas, deixando uma triangulação nas imagens onde sempre uma dessas mulheres observa, fora de foco. Enquadramentos como o da cena do espelho também se tornam inesquecíveis.
No filme, até mesmo a doença degenerativa da protagonista, razão dos momentos mais emotivos, não abre espaço para uma visão de coitadismo em relação à personagem, pelo contrário. Malu é uma força da natureza, uma mulher que, mesmo diante do destino inevitável da morte, não se rende ao que se espera dela. Vanguardista, contraditória, detestável, engraçada e admirável, a mãe de Pedro Freire parece ter um filme potente à sua altura, o qual retira da sua figura não apenas a potência como o próprio sentido de existir.
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