Como abordar um tema tão delicado e doloroso como aquele que se passa com jovens meninas na Ilha do Marajó? Marianna Brennand compartilhou, antes do início da sessão, que a ideia inicial do seu primeiro longa de ficção era, na verdade, um documentário. Como documentarista, a diretora passou anos pesquisando sobre a realidade dos crimes sexuais cometidos contra jovens meninas, abusadas em casa e fora de casa, aos dez, doze, quatorze anos, sem nenhum tipo de suporte ao qual recorrer.
A escolha pela narrativa ficcional se fez uma vez que se viu impossibilitada, eticamente, de expor meninas e mulheres mais uma vez, desta vez em frente às câmeras, ao sofrimento de suas experiências. Para Brennand, seria como agredi-las uma segunda vez. Portanto, em um estilo “dardenniano” (produtores do filme, inclusive, ao lado de outros nomes como Walter Salles), a diretora constrói seu filme por meio de um cinema naturalista, ainda deixando transparecer sua origem documental, que se equilibra entre tentar ser forte o suficiente para se manter como um filme de denúncia, e sensível o suficiente para não expor uma violência tão cruel e desconfortável.
A sua abordagem tem êxito em alcançar ambos os objetivos. O roteiro para mim é um grande destaque em “Manas”, uma vez que trabalha muito bem a construção da rejeição do público e o crescente ódio direcionado ao personagem do pai, um típico homem conservador e religioso cujo comportamento abusivo afeta a vida de toda uma família que se torna refém de suas ordens e atrocidades. Ao mesmo tempo, quanto à protagonista, pequenos momentos marcam diante dos nossos olhos a sua mudança de comportamento e a gradual perda da inocência que lhe era de direito - como nas cenas do batom vermelho e do banheiro do bar.
Brennand sucede, por meio do recurso da repetição, em apurar significados diferentes à dinâmica familiar a cada retorno. O filme volta às mesmas linhas de diálogos e os mesmos processos, aferindo uma nova significação a cada novo acontecimento, fatalmente mais pesada dramaticamente que a anterior. Ao fim, a protagonista grita por socorro para todos os lados, mas parece nunca ser ouvida. Essa é a realidade de muitas meninas na Ilha do Marajó, mas que, diferentemente de Tielly, não conseguem ter forças para dar um basta no horror em que vivem. Lutam sozinhas ou aceitam o sofrimento desde muito cedo.
O filme me lembrou bastante do “Miss Violence”, filme de 2013 do diretor Alexandros Navranas. Contudo, o “Manas” é muito mais sensível em relação à sua abordagem.Acredito que ambos chegam ao mesmo lugar, mas o caminho que decidem percorrer perpassa pelas diferentes experiências de gênero de cada diretor. É um claro exemplo da diferença de uma mulher na direção de uma obra que conversa diretamente com experiências femininas. Marianna Brennand, nesse caso, fez a escolha certa ao recorrer à ficção para ver-se livre, em partes, na sua forma de fazer cinema, abordando tal temática, sem perder a pertinência política e social que o filme possui.
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