Talvez você, como eu, não conheça, mas antes de falar sobre Nickel Boys (2024), é pertinente apresentar a história breve da The Florida School For Boys, um reformatório para jovens meninos na década de 60. Localizado na Flórida, em uma pequena cidade chamada Marianna, a instituição esteve em atividade durante mais de 1000 anos, iniciando em 1900 e fechando apenas em 2011, e em dado momento chegou a ser o maior reformatório juvenil do país. Após anos de acusação de violação de direitos humanos, abusos e até ocultação de cadáver, a instituição fechou as portas e o que se descobriu sobre o que era praticado no local virou livro vencedor do prêmio Pulitzer, chamado “Nickel Boys”, escrito por um ex-detento da instituição chamado Colson Whitehead, a partir de relatos pessoais e de colegas abusados à época.
A obra dirigida por RaMell Ross, Nickel Boys, é uma adaptação do livro e se passa na década de 60, quando Elwood é preso injustamente e levado ao centro de detenção. Quando você tem uma história como essa, comovente e com tom de denúncia inato, é esperado que você tenha dois caminhos cinematográficos a seguir: o documentário ou o drama histórico. Se você seguir pelo documentário, terá de entender por qual ângulo abordar o tema, o que pode levar a uma fórmula repetida de documentário expositivo tradicional, cheio de entrevistas e cenas expositivas que irão localizar o espectador espacialmente e apresentar o ocorrido no seu contexto histórico-social. De praxe.
Se você seguir pelo drama ficcional, por outro lado, existem várias boas maneiras de construir uma história comovente e, em muitos casos, pronta para levar um Oscar, especialmente se apostar em um ator A-List como protagonista e uma campanha forte. Decerto é que Nickel Boys tinha todo o material para seguir por ambos caminhos, tanto material que a escolha de RaMell Ross foi inusitada: seguir pelos dois. Em sua filmografia, o diretor mostra ter proximidade com o documentário, mas aqui ele decide experimentar a ficção sob o ponto de vista documental, levando essa percepção de realidade no cinema à risca através de uma experimentação formal com a câmera, extremamente corajosa e que tinha tudo para dar muito errado.
Durante os primeiros minutos de filme, não sabemos qual o rosto e, por conseguinte, qual a cor do protagonista. Vemos o mundo inteiro pelos olhos dele, mas não sabemos qual o corpo que habitamos. Por isso, as experiências são apenas... humanas. Em menos de 10 minutos, o garoto olha para seu próprio braço, negro, e tudo então começa a ganhar uma perspectiva racial. Um peso é adicionado ao mundo e é com ele que passamos a conviver pelo resto do filme. Com isso, o que Ross deseja é que entremos na pele do personagem, literalmente, observando o mundo através dos seus olhos e assimilando a violência de uma maneira que nem o documentário, nem o drama histórico, de abordagens clássicas, seriam capazes de proporcionar com igual impacto.
Na efervescência das discussões sobre direitos civis, os Estados Unidos da década de 60 estavam marcados por forças progressistas e reacionárias em constante conflito. Figuras como Luther King, Malcom X e Kennedy protagonizaram um momento marcante da história do país ao mesmo tempo em que jovens garotos, pretos, eram assassinados pelas mãos racistas do próprio Estado. A câmera, explorando essa perspectiva de ponto de vista, acoplada ao corpo do ator, junto das experimentações do Ross ao misturar trechos de filmes como “Defiant Ones” (1958), é parte desse experimentalismo formal que casa perfeitamente com a abordagem temática do filme.
Além disso, RaMell inclui momentos de viagem, entre o passado e o presente, lidando com a repercussão fática do que vem sendo descoberto sobre os abusos que aconteceram no local e o que realmente ocorria àqueles garotos, chegando a usar o trem como metáfora para a passagem de tempo, nesse vagão de trem que parece nunca ter fim. O filme se enfraquece apenas quando há mudança de perspectiva, de Elwood para Turner, a partir do que vem a ser um “segundo ato” na real. Existe um certo delay no tempo de reação dos personagens, não sei se culpa da montagem ou de fato do próprio filme, mas acaba não sendo muito bem-vinda para o ritmo da trama. É nesse momento que o diretor parece sobrepor a forma ao roteiro, demorando para encontrar seu caminho de volta. Ainda assim, o saldo é positivo, especialmente pela inovação formal no que tange a um drama histórico tão forte e as atuações de Ethan Herisse e Brandon Wilson parecem entender a proposta, inclusive o desafio que vem com esta.
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