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Foto do escritorFabiana Lima

Nosferatu de Robert Eggers é folk horror pelas lentes do gótico do expressionismo alemão.

Entre a contemplação do mal e a relação com a natureza do Nosferatu de Herzog e o espetáculo extravagante, sexy e de trucagens de Coppola, a versão de Eggers do ícone da literatura e das telas é especialmente gótica, fria e monstruosa. 


Em 1922, quando Murnau lançou “Nosferatu” na Alemanha, que acreditava ter deixado seus piores dias para trás após o fim da Primeira Guerra Mundial, o diretor enfrentou uma batalha judicial extensa após a acusação de plágio vinda da ex-esposa de Bram Stoker. O filme, como muitos sabem, realmente perdeu o direito de ser comercializado na justiça, que o considerou um plágio da obra, tornando-se assim uma espécie de morto-vivo do cinema ele mesmo, recorrendo a distribuições ilegais por anos.

O contexto histórico do surgimento de Nosferatu (1922), assim como do surgimento do Drácula de Bram Stoker, tem ligação direta com a peste negra na Europa e os momentos difíceis que a Alemanha enfrentava em ambos os períodos, tanto econômicos quanto sociais. É impossível falar sobre a história dessa figura sem recorrer à própria história da Alemanha e da Europa, como um todo. Isto é, tanto o expressionismo alemão no Cinema quanto a necessidade de recorrer a uma explicação sobrenatural para o castigo da peste, nas lendas e folclores europeus, especialmente romenos, são aspectos que influenciam obras que vieram depois, de Herzog e Coppola a Eggers, cujas histórias são alegorias cinematográficas de todos esses contextos.


Na cena inicial de Nosferatu (2024), Robert Eggers invoca o retorno do personagem como se realizasse um ritual. O prólogo do filme é um convite direto para o inferno, com a imagem quase amaldiçoada de Ellen em meio a um jardim de lírios, se contorcendo entre o prazer e a dor, como se apresentasse os caminhos que sua personagem persegue a partir disso. Entre o sagrado e o profano. Desde A Bruxa (2015), o diretor nunca mais tinha trabalhado uma personagem feminina de maneira tão interessante quanto a de Lily Rose-Depp neste filme: uma heroína trágica, condenada pelo imperdoável pecado de possuir sexualidade. 


Essencialmente, a trama continua a mesma. Nicholas Hoult interpreta o agente imobiliário Thomas Hutter, enviado até o castelo de Orlok (Nosferatu) para vender uma propriedade. Ele acabou de casar-se com Ellen (Lily Rose-Depp) e não sabe que o seu chefe está em conluio com Orlok. Logo, forças do mal que logo virão até a cidade, trazendo a peste e, por consequente, a morte, da qual apenas Ellen a todos poderá salvar. Eggers decide continuar na mesma linha, não modificando praticamente nada do enredo original. Contudo, visualmente, ele aponta um caminho bem diferente. A começar pela própria figura de Nosferatu, longe de qualquer semelhança humana, mais perto de um monstro. 


Interpretado por Bill Skarsgard, o personagem é cheio de feridas abertas, com o corpo completamente corroído. Este Nosferatu está muito mais próximo da morte que seus antecessores. A imagem deste monstro é precisamente um dos elementos que tornam o filme tão perturbador desde o começo. Cria-se uma aversão imediata ao seu corpo, um nojo descabido pelo estado de putrefação que representa. Sua respiração ofegante é alta e o ritmo, quando fala, é quase como se estivesse lutando para viver. Ele é o oposto do personagem de Thomas, cuja ternura em seus olhos azuis desperta pouco ou nenhum desejo sexual aos olhos de sua esposa.

A imagem de Ellen, por sua vez, é de uma mulher condenada pelo desejo e reprimida por este através de um controle social de origem patriarcal e religiosa. A complexidade do seu personagem, nesta versão, é muito mais nítida e não pode ser descrita por outra coisa senão um desejo sexual tão avassalador que deve, de todas as formas, se ver contido após o casamento. A própria deseja se ver livre do desejo, mas, ao mesmo tempo, parece que para ela já é tarde demais. Ela se torna maculada pelo pecado, que nasce de procurar prazer em um momento em que mulheres não podiam. Sua ação a leva à penitência eterna, como Deus fez com Eva ao comer a maçã. 


Sua personagem é uma heroína trágica que, ao não conseguir se livrar dos pensamentos libidinosos, paga com o preço da própria vida pelo mal que se instaura ao seu redor. Essa repressão do desejo feminino reforça a ordem patriarcal, onde suas “trevas” são imperdoáveis a não ser pelo sacrifício, o que possibilita a salvação, algo que deve aceitar como seu destino, como diz o personagem de Willem Dafoe. Eggers estabelece esse embate de forças que a personagem representa, sua ideia virginal e sua natureza profana, através de uma atmosfera obscura, inspirada pelo paganismo, ocultismo, folclore e mitologias romenas, cujos contrastes de luz e sombras também são próprios do expressionismo alemão do filme clássico de Murnau.

Os planos abertos, por sua vez, contemplam a relação da natureza, onde mora o folk horror, bastante presente no filme de Werner Herzog (o que explicaria o plano quase idêntico de ambos os filmes de Ellen caminhando entre os túmulos). Da obra de Coppola, com a qual foi bastante comparado, acredito que Eggers toma emprestado a abordagem sexual do vampirismo, principalmente. Ele também recorre a Friedkin com “O Exorcista”, exigindo fisicamente além de Lily Rose-Depp em cenas realmente assustadoras, nas quais a atriz se contorce, se baba e se rasga - completamente fora de controle. Algumas das melhores imagens deste ano estão na expressividade do olhar de Lily Rose-Depp se conectando aos personagens de Hoult e Skarsgaard pelo maligno.


Confesso que nunca fui a maior fã do diretor, seja em A Bruxa, Homem do Norte ou O Farol, sempre achei que Eggers tinha um problema com o excesso de controle. Não acho que seja rigor, necessariamente, fica mais no campo do engessamento da abordagem. Sobre se permitir pouca liberdade, com seus planos frontais pouco inventivos e personagens carentes de substância. Contudo, acho que a sua visão funciona em Nosferatu. Aqui, existe algo além do interesse pelo folk horror, pela mitologia e curiosidade pela sexualidade da personagem feminina. Existe uma vontade de perseguir imagens verdadeiramente memoráveis, como é o caso do 360º na sombra de Nosferatu invadindo o quarto, assassinando crianças, definhando na luz do sol.

É isso que leva o remake a um patamar distinto, o qual mesmo com muitas influências, não tinha como não tê-las, ainda se apresenta como autoral. É complexo, maduro e assustador. Quando a luz dourada, pela primeira vez, invade as telas, o orgasmo leva ambos os corpos em direção à morte. O cinema se queima no sol da psicanálise. É macabro e diferente dos outros filmes de "Nosferatus" e "Dráculas", diante dos quais a cena clímax adquiriu diferentes (e algumas ótimas) formas, mas nunca pela ótica do prazer máximo como redenção. Ao menos não tão claro. O estudo de personagem é sublime e dialoga, até hoje, com a forma como penalizamos mulheres e a condenamos pela busca pelo prazer.


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