Quando comecei a escrever sobre Cinema, logo no início, me recusava a assistir certas obras que eram de autoria de pessoas - em sua maioria homens - acusados de crimes, ou mesmo sem condenação, mas com atitudes publicizadas cujo viés me parecia apontar para um caráter questionável.
Por anos, eu segui na linha irredutível de que jamais veria nenhum filme dirigido, protagonizado, entre outros, por alguma dessas pessoas e, caso visse, faria do meu dever moral jamais indicar publicamente essas obras para outras pessoas, o que significava não comentar sobre elas. Me recusava de forma veemente a separar o artista de sua obra, vendo ambos como um espelho um do outro, cujo sentido jamais poderia ser desvinculado.
Em 2020, cheguei a publicar um pequeno artigo onde falava que embora não houvesse condenação, Woody Allen deveria ser posto em um local de ostracismo dentro do Cinema, colocando na conta do leitor um discurso de irrazoável insensatez sobre a relação de certas pessoas com a obra, com a arte posta e me colocando, hoje vejo, em um patamar de elevado grau moralista, o qual percebo rodear cada dia mais todos os debates que orbitam em torno desse polêmico tema.
Ao longo desse texto, não pretendo me colocar em um local de sabedoria máxima sobre o tema, nem mesmo atribuir qualquer resposta ao problema e, muito menos, sair em defesa dos indivíduos que irei citar, muitos dos quais cometeram atos atrozes e abomináveis, mas sim de divagar em torno da pergunta que a cinefilia deste século parece estar obcecada sobre: seria possível separar a obra do artista?
I. O QUE MUDOU?
Até a virada do século e o surgimento das redes sociais, não parecíamos, enquanto sociedade, nos importar tanto com o caráter de quem estava por trás da arte. Durante anos, Beethoven e o caso de pedofilia que cercava sua imagem não nos impediu de contempla-lo como um figura de extrema relevância na música, nem de ouvir a Quinta Sinfonia como se o ápice da musicalidade fosse. Por anos, também, saber que Picasso foi acusado de abuso sexual não nos impediu de ver suas obras em museus e estudar a importância de um quadro como Guernica na escola.
No Cinema, muitos de nós até pouco tempo tampouco parecíamos nos importar com as acusações que Hitchcock sofreu relacionadas a episódios de abuso sexual e assédio moral dentro dos sets de filmagem. Mesmo anos depois, Vertigo continua sendo um dos mais importantes filmes da história, cuja premissa, técnica e história possui influência em ao menos dezenas de outros filmes que irão compor o hall de obras-primas do cinema moderno.
Em um outro nível, mais drástico, temos algo parecido com o caso Roman Polanski. Condenado por estupro (recentemente perdoado pela sua vítima, que chegou a tirar foto com o diretor esse ano) e foragido da justiça, o diretor não deixa de ser reconhecido até hoje por Chinatown, O Bebê de Rosemary e Repulsa ao Sexo, por exemplo, três dos filmes mais relevantes para a história do Cinema. Seu crime não implicou diretamente na importância que a obra teve e continua tendo para a sétima arte, e nem teve muito prejuízo para a relação pessoal construída com quem assistiu, que mesmo abominando-o ainda consegue perceber Rosemary ou O Inquilino como bons filmes, por exemplo.
A história se repete, na música, na pintura, no teatro e em todas as outras artes. O curioso é que, em todas essas artes, quanto maior o distanciamento temporal maior o senso de que deve prevalecer a ideia de que o autor é pequeno em comparação a arte que produziu. Porém, por outro lado, enquanto o distanciamento temporal é uma peça-chave para alterar ou manter certa percepção, assumindo assim, de alguma forma, que talvez a obra tenha mais valor enquanto arte que o próprio artista, do outro lado da mesma moeda, existe um revisionismo histórico pelo qual essas grandes e relevantes figuras vêm passando e pelo qual, ao mesmo tempo que vejo como necessário, também me preocupa.
O revisionismo dessas figuras é uma cobrança recente e, dentro da cinefilia especialmente, surge em um período inegável de intensa cobrança de posicionamento político de artistas, intenso ativismo e de uma busca maior pela representatividade nas artes. Até aí, eu compreendo. Estamos cada vez mais conscientes de que o Cinema necessitava de uma maior representatividade social já que, historicamente dominada por homens brancos, essa arte excluiu e apagou, ao longo de mais de 100 anos, mulheres, minorias raciais, pessoas LGBTQIAP+ e muitos outros grupos.
A cobrança é legítima, não nego. Afinal, é bastante compreensível que muitos grupos enxerguem na micropolítica, ou seja, no ato de abdicar-se de assistir certas obras e recusar financiar certos artistas cujo posicionamento não se alinha com o seu (ou mesmo cujos atos sejam de fato criminosos), uma forma de reivindicar mudanças reais ou mesmo de manter a própria consciência limpa. Nesse ínterim, a micropolítica continua sendo, de uma forma ou de outra, uma das únicas maneiras de posicionar-se politicamente dentro de um sistema capitalista. Mas, seria essa forma verdadeiramente efetiva?
II. MICROPOLÍTICA
Recentemente, a autora JK Rowling cujas declarações em redes sociais incitam discursos de ódio à comunidade trans, tem sido o maior alvo de boicote nas redes. Com uma nova série sendo lançada tendo ela como produtora executiva e consequentemente uma das pessoas financeiramente beneficiadas com o eventual sucesso da série, muitos grupos de pessoas trans e apoiadores do movimento LGBTQIAPN+, no geral, têm se movimentado na internet a favor de levar seus produtos e sua obra principal a uma espécie de ostracismo.
Uma das principais formas de atingir esse objetivo seria deixar de comentar sobre tudo que JK chegar a produzir, incluindo parar de incentivar o consumo da sua principal obra, deixando que as pessoas esqueçam cada vez mais de Harry Potter até que a saga seja subtraída da indústria cultural de tal modo que tenha uma quantidade cada vez menor de fãs e apoiadores como um todo. Essa é uma forma legítima de boicotar a obra que a comunidade encontrou ainda que muitos possuam a plena consciência de que nenhuma dessas atitudes deixará a autora menos rica ou menos privilegiada.
Outra forma de boicote muito conhecida e exercida por uma grande quantidade de jovens cinéfilos que acreditam que a atitude de um cineasta como Woody Allen foi antiética, é de consumir filmes do artista apenas de forma pirata. Acreditando que não estariam contribuindo financeiramente com o ingresso nos cinemas, manteriam sua integridade intacta por não apoiar diretamente um sujeito que cujas atitudes vão contra aquilo que estes acreditam ser o moralmente correto, verdadeiramente ético. Essa forma, no entanto, é uma micropolítica que esbarra em demais questões éticas relacionadas a quem seria o verdadeiro autor de uma obra, já que o cinema é reconhecidamente uma arte coletiva, e de até onde estaríamos deixando de contribuir financeiramente apenas com o diretor - e deixando de lado todo o trabalho de uma equipe, também.
Dos dois modos, o fato é que a micropolítica é micro por um motivo: ela acontece em um nível individual e, se não praticada por todas as pessoas, irá esbarrar em uma inefetividade muito óbvia que, dentro do sistema em que vivemos, há de saciar apenas a moral de quem tem a necessidade de manter-se com a consciência limpa a ponto de poder dizer em alto e bom som que não apoia certas práticas, pois boicota determinados artistas e obras. Em muitos casos, eu compreendo que o moralismo seja válido no sentido de contribuir com um discurso e de proteger um grupo específico dos discursos de ódio, por exemplo, mas em outros eu me questiono: até que ponto a ânsia de separar a obra do artista leva a falsas simetrias e a moralismos inócuos?
III. FALSAS SIMETRIAS
É aqui que mora o cerne da questão, ao menos pra mim: todos os artistas são colocados no mesmo balaio de gato, gerando falsas simetrias entre aquele que agiu de forma moralmente questionável e aquele que de fato cometeu um crime. O moralismo que vai incidir sobre um acaba incidindo sobre todos e isso, a longo prazo, eu percebo, se não soubermos como lidar adequadamente com as zonas cinzentas dos nossos julgamentos, acabará por prejudicar a nossa relação com o cinema e com as demais artes, provocando uma limitação de conhecimento sobre estas, onde as únicas obras que irão importar serão aquelas cuja nossa opinião alcança.
A audiência contemporânea tornou-se radicalista a ponto de tentar apagar a existência de filmes com problemáticas raciais, alguns exigindo inclusive que cenas de E O Vento Levou fossem deletadas, por exemplo, ainda que o filme tenha sido lançado em uma época onde discussões como as de hoje ainda não estavam em sociedade e ainda que a exclusão mate o debate ao não permitir que ele se desenvolva. Contudo, ao mesmo tempo, essa é a mesma audiência que é liberal suficiente para aceitar migalhas de representatividade vindas de filmes que, por exemplo, evitam assumir publicamente a orientação sexual de um personagem, mas deixam “easter eggs” suficientes para você deduzir - mesmo que para isso seja necessário um post de alguém que já viu aquela obra três vezes para apontar.
À primeira vista, o posicionamento político através do radicalismo de uma micropolítica, especialmente de boicote, pode parecer profundamente coerente. Mas, com uma análise mais aprofundada, é uma abordagem totalmente questionável. Com a ajuda de uma lupa, não é difícil perceber que nesse caso se trata de uma estratégia um tanto vazia, pois é praticada por quem, além de se inserir no sistema, é liberal suficiente para contribuir com o discurso quando o mesmo lhe convém, indo de antissistema para contribuinte direto da mesma lógica que abomina.
IV. CONCLUSÃO
Sob esse mesmo viés, o que eu percebo é que a separação entre obra e artista é uma ambiguidade nata. Embora seja impossível concluir onde ambos se separariam, se um é necessariamente o produto do outro, por outro lado é uma necessidade perceber as obras como algo que vai além do artista em si e que sobrevive para além dos tempos, mesmo anos depois que este se for.
Seria um meio-termo concluir, portanto, que não cabe ao crítico de cinema, e nem ao cinéfilo que possui o interesse profundo em conhecer melhor a sétima arte, a tarefa de julgar o artista como se juiz fosse. Cabe à justiça julgar o artista em termos de penalização e ao revisionismo que fazemos, de desvendar as problemáticas inerentes ao possível viés problemático deste em suas determinadas obras. Mais cabe a nós apontar o que seria inconcebível em determinado filme, do que deixar de assisti-lo.
Trazendo para mim, mais cabe perceber o que eu não aceitaria hoje em um filme em termos de abordagem do corpo feminino, do que exigir que um filme do século XX que aborde mal temas feministas caia em um ostracismo absoluto porque o diretor agiu de forma antiética ou criminosa. Enquanto agente política, acredito que mais vale perceber os problemas nessas obras, apontá-los e instigar o consumo de novos e novas cineastas contemporâneas, cujo olhar é mais compatível com a sociedade atual, que tentar apagar a relevância de obras anteriores, ou mesmo de julgar tudo sobre um único viés inflexível, moralista e radical.
Não se trata de defender certos artistas e seus comportamentos inaceitáveis, mas de propor uma visão mais crítica sobre o cancelamento indiscriminado e sobre como os discursos parecem ter se radicalizado com o tempo, a ponto de muitos serem completamente irrazoaveis e incoerentes. Precisamos questionar mais nosso próprio posicionamento e nossas próprias estratégias, no sentido de nos perguntar até que ponto se eximir de consumir certas obras por não separar a arte do artista de forma irredutível pode prejudicar sua relação com a arte, imprimindo no seu conhecimento um traço muito forte do seu próprio preciosismo.
Não existe análise imparcial, mas não existe análise crítica sem conhecimento. Negar uma obra por quem a produz é desconhecer e privar-se de muita coisa, inclusive da possibilidade de critica-la. Esse é o ponto.