Na década de 40, o escritor William S. Burroughs já era um sujeito controverso. Adicto, traficante, fascinado por armas, culpado de assassinar a esposa com um tiro acidental, queer, amante do estilo de vida marginal, um tanto neurótico e, curiosamente, fascinado pelas propriedades do Ayahuasca a ponto de viajar para os interiores da floresta Amazônica em busca do chá, o estadunidense originalmente burguês, formado em Harvard em Inglês e Antropologia, ficaria conhecido posteriormente como padrinho da geração “beat” e é, sem dúvidas, uma pessoa para quem tudo pode e deve ser desafiado.
Após o sucesso do enérgico e pop “Rivais”, para mim a melhor estreia comercial de 2024 até então, Luca Guadagnino se aventurou por um caminho mais obscuro e um tanto inacessível ao adaptar o livro “Queer” de William S. Burroughs. Com Daniel Craig como protagonista e uma atmosfera bastante introspectiva, estilizada e artificial, “Queer” está a milhas de distância do mainstream atingido com o primeiro filme. Está distante inclusive de “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), em que pese muitos possam pensar que esteja no mesmo caminho ao avaliar unicamente pela premissa.
Na obra, o personagem de Craig vive no México pós Segunda Guerra Mundial. A cidade cenográfica, que não faz questão de esconder sua natureza artificial, parece uma maquete desde o primeiro momento. Tal constatação gera uma sensação de deslocamento imediato, sentida pelo espectador e a qual, por todo o filme, nunca o deixa de fato. O personagem logo cria um fascínio por um jovem rapaz chamado Eugene. Sem sucesso na primeira abordagem, Lee passa a perseguir o jovem até que, porventura, encontra uma brecha em seu comportamento a qual permite que ambos desenvolvam uma história tóxica de amor, desejo e ressentimento.
Por eu pouco conhecer Burroughs, a não ser pelo fato de que seu livro “Naked Lunch” havia sido adaptado por David Cronenberg para os cinemas, não notei à primeira vista que o filme era mais sobre o escritor, quase uma cinebiografia, do que sobre a adaptação em si. Para mim, estava diante de uma história sobre o Lee, personagem inteiramente fictício, com suas contradições, desde o seu entendimento sobre ser uma pessoa queer, à forma como lida com a bebida, a heroína e o relacionamento com um rapaz muito mais jovem que ele. Aos poucos, percebi que estava diante de um filme sobre o escritor Burroughs e que seus livros, na verdade, são mais sobre ele e suas experiências sexuais e com drogas do que sobre personagens inventados.
Tratava-se, afinal, de um filme bem mais desafiador do que pensava e isso foi me envolvendo ao ponto de me render completamente aos mistérios e às esquisitices dessa exploração do desejo irrepreensível e da loucura, muitas vezes sádica. Me peguei gostando de estar dentro da psique de um homem que se revelou transgressor e solitário. Incoerente e surrealista. Surrealista, por sinal, me parece uma boa forma de descrever as cenas que me empolgaram ao longo do filme (especialmente a cena em que os personagens vomitam o coração para fora, de maneira literal, ou se entrelaçam na mesma pele, simbólico para a maneira como o diretor usou Burroughs como referência na construção de ambos os personagens, como lados de uma mesma moeda).
Mais próximo do seu remake de “Suspiria” (2018) e do agridoce “Até Os Ossos” (2022), Guadagnino nos leva de carona nessa viagem transcendental e episódica, meio Wes Anderson, Roman Polanski e Claire Denis, desenvolvendo nos cenários, nas coreografias dos corpos e na paranoia do personagem central, um reflexo direto da vida contraditória e marginal de Burroughs. Mais que isso, da vida de uma pessoa queer e a sua dificuldade de se encaixar nas normas morais de uma sociedade com o preconceito tão enraizado, que se reflete até mesmo dentro da própria comunidade.
Nesse sentido, Craig se entrega de corpo e alma a esse papel que exigiu dele uma fisicalidade distinta daquela vista em filmes como “007” ou “Knives Out”. Seu senso de humor permanece, mas há mais camadas de onde seu comportamento errático vem. A trilha sonora é mais um enorme destaque nesse filme, congruente com a atmosfera de uma juventude transgressora da década de 80 e 90, com músicas como “Come As You Are” do Nirvana e “Leave Me Alone” de New Order. Além, claro, de todas as músicas de Trent Reznor e Atticus Ross e a presença de Caetano Veloso, de novo em um filme de Guadagnino, com a música “Vaster Than Empires”, fechando o filme com chave de ouro.
Acredito que “Queer” no mesmo ano que “Rivais” marca a versatilidade do diretor italiano, consagrando-o como um dos cineastas mais interessantes da atualidade pela forma como lida com os corpos e como dialoga, em filmes de fácil até os de mais difícil acesso, com a experiência do desejo, fator universalizante o qual tem estado em falta no cinema comercial ao redor do mundo. Há muito tesão, de fato, na maneira como Guadagnino observa seus personagens e constroi suas relações, e há, claro, uma naturalização do corpo queer, como deve ser, na demonstração do afeto e do desejo. Este filme em específico não se tratava de uma tarefa fácil, mas Guadagnino apresenta um trabalho à altura da complexidade da linguagem de sua maior inspiração.
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