Em confluência com a precarização do trabalho cada vez mais latente em nossa sociedade, as novas tecnologias acabaram por disseminar um novo modelo de exploração da força do trabalho também dentro da indústria do entretenimento. Uma das principais características das relações de trabalho modernas é o fato de serem líquidas e buscarem a desconexão do indivíduo com o seu trabalho, como bem diz Márcio Pochmann, “os experimentos de uberização do trabalho avançam em forma diversificada no espaço supranacional. Começaram com iniciativas no transporte individual, por meio da desregulamentação generalizada na oferta de sistema de táxis por aplicativos das tecnologias de informação e comunicação, alcançando atualmente os contratos de zero hora, cujo trabalhador permanece em casa aguardando a demanda de sua força de trabalho advinda de qualquer parte do mundo. Tudo isso à margem da regulação nacional de trabalho, fruto da generalização das novas tecnologias de informação e comunicação, em meio ao enorme excedente de mão-de-obra”.
A nível nacional a uberização do trabalho mostra ter inúmeros reflexos negativos, os quais estão sendo cada vez mais reconhecidos, ainda que falte avançar em vários quesitos urgentemente. Contudo, no que tange a uma visão mais global dessa mesma lógica de economia compartilhada e uma nova reestruturação da produção capitalista, a indústria do entretenimento, com o avanço das plataformas de streaming, por exemplo, fez com que profissionais como roteiristas também se vissem cada vez mais afastados da obra que criaram, do fruto do seu trabalho, o que passou a abrir espaço para questionamentos bastante sérios sobre valores residuais pela reprodução de séries e filmes nas plataformas, algo que não acontece hoje, e regulação do uso de inteligência artificial na criação de novos roteiros.
Sabe-se que hoje é plenamente possível a criação de novos roteiros para televisão por meio de IA a partir de uma ideia base de criação humana e, até o momento, roteiristas possuem pouquíssimo controle no que concerne ao uso dessa prática para reprodução de obras e mais obras que podem ser feitas em larga escala na indústria do entretenimento em um futuro muito próximo.1 Além disso, também existe o caso dos atores que passaram a se afastar, de forma ainda mais complexa, do controle da sua própria imagem em razão das possibilidades oferecidas pela inteligência artificial, que permitem dentre muitas situações, a reprodução da fisionomia do ator e da sua voz também dentro dos mais variados contextos, sem necessidade de autorização prévia deste, como já ocorre no YouTube por exemplo. 2
Da mesma forma que a Uber, o iFood e demais plataformas de prestação de serviço utilizam da força de trabalho de seus empregados sem necessariamente querer atribuir a estes um status de emprego formal, com direitos trabalhistas assegurados, plataformas de streaming também buscam por relações “pejotizadas”, terceirizadas e cada vez mais afastadas de uma solidez que antes era comum às relações trabalhistas - especialmente na televisão. Hoje, a discussão sobre a regulação da inteligência artificial nas relações de trabalho acontece por garantias de condições mais dignas de trabalho e, também, em prol de prevenir futuras violações a direitos autorais e de propriedade intelectual, ao menos no que concerne aos roteiristas.
A greve que hoje se concentra na indústria Hollywoodiana, uma paralisação dupla do Sindicato dos Atores e o Sindicato dos Roteiristas, irá repercutir, indiscutivelmente, em todo mundo pois acontece primeiro lá o que é já é uma tendência mundial: a necessidade de uma regulação para situações como essa, que são inerentes à uma economia da internet 4.0 e que traz consigo questões éticas sobre a exploração da força do trabalho as quais são inéditas e extremamente complexas. A quem pertence o trabalho desenvolvido a partir de uma IA? Ao desenvolvedor, ao roteirista, ao produtor? Não sabemos ainda como resolver essas questões nem no Cinema, nem na Música, por exemplo.
Também tornou-se cada vez mais comum disponibilizar na internet versões de músicas de um cantor, na voz de outro cantor. Diante disso, a quem pertencem os valores que são recebidos a partir da monetização desta nova música modificada por uma IA? E, quanto à ética desse tipo de prática, quais são os limites da exploração da voz de uma pessoa, em alguns casos depois de morta? Todas essas pessoas, sejam artistas ou não, inseridas nesse contexto econômico, estão se deparando com o mesmo dilema: a distância cada vez maior entre o trabalho e o indivíduo, o que leva à inevitável precarização do seu trabalho.
Ironicamente, a nova estruturação do sistema capitalista gira em torno de uma pessoalidade maior dos serviços, mas uma impessoalidade cada vez maior sobre quem o presta. Enquanto o sistema de algoritmos pode tornar a experiência melhor para o consumidor, também pode alterar completamente a forma de se produzir entretenimento, transformando nossa experiência em uma padronização de gosto e nos inserindo em uma bolha algorítmica alienante e, em alguns casos, bastante perigosa. Trata-se de algo que vai além de mera crise criativa, é uma possibilidade de maior lucro econômico para essa indústria que nem sequer repassa aos roteiristas quaisquer valores atribuídos a produtos comercializados a partir das séries criadas por eles, por exemplo.
Assim, a greve que Hollywood hoje passa é histórica e deve ser determinante para quem estuda direitos autorais, propriedade intelectual e inteligência artificial no século XXI. A depender do que será acordado daqui para frente, é certo que estamos vivendo tempos de mudança profunda na economia mundial e isto nos leva em direção a novos pensamentos e visões de mundo, especialmente no que tange às relações de trabalho. A GIGeconomy, baseada em um modelo compartilhado e tecnológico, prometeu revolucionar a nossa vida e facilitar nosso cotidiano, mas o preço que muitos profissionais que aderiram a esta estão pagando é muito alto para ser ignorado.
Referências:
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